segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Malária

Depois de uns dias com dores de cabeça e uns espirros, na manhã da partida para o Senegal o Daniel acordou a dizer que lhe doía o corpo todo, como se tivesse sido atropelado por um camião. Nada de anormal, talvez todos nos estivéssemos a sentir assim depois de tantas horas de estrada e noites em tendas.

Mas, ao longo do dia, as dores não passaram e o desconforto foi uma constante. Fez a maior parte da viagem deitado, que era como se sentia menos mal, e só tirou uma ou duas fotos, no Parque Natural de Dwaling. Foi quando percebeu que nem forças tinha para pegar na máquina.

Mau! O rapaz só não tira fotos quando dá cabo do material ou quando está mesmo mal. Passado o parque, começam os enjoos. Até pensei que se deviam ao cheiro que ficou por termos dado boleia a uns homens até à fronteira, mas eles não cessaram com o ar mais fresco.

Já nas horas de desespero passadas para entrar no Senegal, percebi que ele tinha apagado e estava com febre. Acho que vamos ter que ir a um médico… Finalmente chegados ao parque de campismo, e porque já toda a gente percebeu que o Daniel não estava bem e o termómetro marcava 39º, deixaram-no ficar na parte do hotel, para que pudesse dormir numa cama decente.

Mas, depois de deitado na cama, ele pergunta-me onde está e, assim, com delírios, não restam muitas dúvidas. Ninguém pronuncia a palavra – quase para não atrair – mas é urgente levá-lo ao hospital…já! O hospital era uma clínica privada e o médico não estava, foi preciso ir buscá-lo a casa. O Daniel continuava a delirar e podem perguntar-lhe o que se passou que ele só se vai lembrar de ter falado com o médico, mesmo que não saiba o que lhe disse.

O homem nem precisou de lhe fazer o teste da gota espessa: viu-lhe os olhos, a pressão e apalpou a barriga. Sentou-se à secretária e falou como quem tem aquele discurso decorado há anos e o repete todos os dias. Receitou uns quantos comprimidos para tomar, mas, essencialmente, a cura é beber muitos líquidos e descansar o corpo ao máximo.

Sim, o Daniel apanhou malária e, na verdade, a palavra assusta um bocado. Todos acreditamos que ele foi medicado a tempo, mas o raio da doença paira por estes lados como um fantasma. A mim, essencialmente, fez-me confusão a forma como as pessoas iam olhando para ele. Até porque os comprimidos começaram a fazer efeito rapidamente e a cor foi-lhe voltando à cara. Mas parecia que tinha "malária" escrito na testa. Toda a gente de lá percebeu logo. Deve ser a força do hábito.

Os dias seguintes foram a luta para que os comprimidos – primeiro – ficassem no estômago, e -  depois – fizessem efeito. A febre foi baixando, mas as forças ficaram sempre lá por baixo. Dizem que a malária é uma valente tareia e confirma-se. Durante dois dias, o Daniel ficou-se pelo quarto do hotel porque todas as tentativas para se levantar o deixavam cansado.

Ficou com melhor aspeto, mas, desta vez, atacado da barriga. Veio tudo ao mesmo tempo, graças a deus. Em conversa com um homem de lá, ele contou-nos que já teve malária 25 vezes e que o facto de o Daniel ter sido logo assistido, impedindo que a doença lhe desse mais forte, ia amenizar qualquer ataque da doença daqui para a frente. Ou seja, estará livre de ir parar a uma cama de hospital como acontece à maior parte das pessoas neste continente se perceber logo os sintomas. Respiremos de alívio por agora.

Bom, o médico tinha dito para ele repousar totalmente, mas isto em África tem muito que se lhe diga e, no dia seguinte, tivemos que ir a um posto da fronteira por causa de um problema com os vistos do pessoal. É que só alguns foram recebidos e já que nos podiam sacar mais algum dinheiro, não iam perder a oportunidade.

Foi o verdadeiro martírio para o Daniel: a espera interminável, o calor, o desconforto do lugar, as dores de barriga, a falta de forças, o stress da situação, a hora de viagem. Foi mau, foi mesmo muito mau. E esta gente gosta de inventar novos problemas quando achamos que já estamos livres.

De volta ao hotel, felizmente o Daniel já tinha vontade de comer qualquer coisa, mesmo que seja apenas metade de um pão e um sumo de laranja. É melhor que nada. Por causa de tudo isto, os planos para partir para a Guiné-Bissau na manhã seguinte foram alterados: saímos apenas ao final do dia, com a carrinha transformada em cama, para que o rapaz aguentasse melhor uma viagem de tantas horas, tanto calor e com a pior estrada de sempre.

Aqui vem a questão pertinente: valerá a pena sujeitá-lo a mais este tormento ou mais vale ir já para casa para recuperar como deve ser? A ideia de ele piorar por não descansar fez-me pensar bem na segunda hipótese. Mas foi para entregar a foto aos miúdos de Dulombi que ali estávamos, por isso, pelo menos isso tinha que ser concretizado. Nem outra coisa passava pela cabeça do Daniel. Seja o que tiver que ser.

Ao terceiro dia, as forças eram cada vez maiores, mas sem abusos. Aqueles buracos na estrada não ajudam ninguém e o estado do rapaz continua a ser uma preocupação constante. Mas se está calor lá fora, dentro da carrinha parada está ainda pior. Não está fácil… e os ânimos não são, obviamente, os melhores. Felizmente, a fronteira na Guiné-Bissau é a que causa menos problemas. Quer dizer, pelo menos é a que nos retém menos tempo.

É que os problemas vieram depois, por causa da necessidade ou não de um pass-avant (o que permite a circulação dos carros no país) que uns dizem já não existir e nos é pedido mais à frente. Pedido é elogio, porque o homem estava mais mal disposto que um touro enraivecido e não nos deixou sair dali durante umas longas e desesperantes horas. É que nem o facto de levarmos um gajo doente valeu de alguma coisa.

Mais de 24 horas depois, chegámos, finalmente, a Galomaro, a aldeia onde ficámos "alojados" na Guiné-Bissau. Valeu a receção efusiva da população, a alegria das crianças que não nos largaram enquanto não as deixámos ajudar-nos com as tendas e o reencontro do Daniel com o pequeno Mala, um miúdo com o qual ele se ligou muito na primeira viagem.


Agora é tempo de descansar sem solavancos. Eis a explicação do porquê de este post vir sem fotografias. Há coisas mais importantes.

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