Eis-nos acordados mais uma vez super cedo e, desta vez, para
um belo banho de água gelada. Nada que o hábito não amacie. O primeiro ponto
para contemplação dos olhinhos foi o Atlas, a gigante cordilheira de Marrocos,
com montes e vales imensos, onde até neve cai (sim, que o deserto, quando quer,
é frio que dói). Um momento bom para apreciar o silêncio e ter a certeza do
nosso tamanho.
Apreciar as imagens que nos acompanham nestes muitos
quilómetros tem-nos preenchido a alminha. E compensa o facto de chegarmos aos
destinos já a altas horas da noite: vamos vendo tudo pela janela do carro, com
paragens para casas de banho estilo caçador no meio do mato, almoços a correr e
despejos de água para o radiador antes que uma das carrinhas queime.
Essa noite foi passada a pouco mais de cem quilómetros da entrada do Deserto do Sahara. Dormimos numa falésia, mas a verdade é que só percebemos isso realmente de manhã quando fomos acordados pela neblina e vimos o espetáculo do nascer do sol, rodeados de areia e mar. De camarote. Que se lixe o pormenor de não haver luz ou casa de banho. Qualquer coisa, a duna é a 27 e só é preciso não levantar as pedras para não ter surpresas com escorpiões.
Assim, começámos o nosso périplo pelo deserto. Quilómetros e
quilómetros de areia e vegetação, dos quais só despertávamos, como crianças,
quando nos atravessavam os camelos à frente ou, claro, quando o sol nasce ou se
põe. Esse espetáculo é imperdível por estes lados. E um privilégio.
Mas não se pense que o deserto é sempre essa pasmaceira. O
caminho apresenta-nos, aqui e ali, autênticas cidades com o que nelas possamos
imaginar (menos ar condicionado, não, isso não há). No entanto, somos obrigados
a deixar máquinas fotográficas escondidas porque os militares não se consideram lá muito fotogénicos. E os
militares por estes lados fazem cara realmente de maus.
Numa dessas cidades, parámos para almoçar na cidade onde o Gil Eanes dobrou os marroquinos. O Cabo Bojador tem apenas um pedregulho para assinalar a "proeza", que parece destruído ou inacabado. Só nós mesmos para continuar a viver destas coisas até hoje.
Além de ser uma viagem que requer algum esforço, o ridículo
da situação são as centenas de paragens policiais com que nos cruzamos nas
estradas. Polícias, militares, malta que não sabe bem o que está ali a fazer,
uns que dormem nas casernas, outros que gostam de nos fazer cumprir à risca o
protocolo de pára e arranca só quando eu mando. Todos nos obrigam a parar e
responder sempre às mesmas perguntas: para onde vamos, de onde vimos, o que
levamos; entre outras mais idiotas como como nos chamamos ou se temos pilhas. A
autoridade é uma coisa muito alternativa nestes países. O facto de termos 500
folhas com as informações já prontas para entregar tem-nos poupado vários
minutos nestes esquemas onde todos são chefes e o querem mostrar. Mesmo que a
200 metros uns dos outros. Ai África, África.
A última cidade onde ficámos em Marrocos foi Dakhla, que
deve, como qualquer palavra em árabe, ser pronunciada como se estivéssemos –
desculpem-me a comparação – a escarrar. Esta é a cidade africana do kitesurf e
a promiscuidade entre deserto e baía faz perceber a existência de tantos hotéis
na zona. Já o nosso "hotel" era bem mais modesto, mas pelo menos
tinha casa de banho (aguinha fria pela manhã) e peixe frito às 11 da noite que
soube pela vida.
O ponto seguinte foi a fronteira entre Marrocos e a
Mauritânia, precedida por mais quilómetros e quilómetros de um cenário de
cortar a respiração. O Deserto do Sahara é tudo o que dizem dele e deve ser
visitado pelo menos uma vez nas curvas da vida. Depois dele, começam os testes à paciência
de um santo para atravessar fronteiras em África.
Para sair de Marrocos, há que "picar o ponto" em
diversos postos: toda a gente quer ver passaportes, documentos dos carros,
conteúdo das viaturas. É preciso contar com umas três paragens pelo menos. Mais
o sol das três da tarde. E não é a pior.
Passadas as portas, entramos na "Terra de
Ninguém", uns seis quilómetros que separam Marrocos da Mauritânia e que,
como se percebe, não pertencem a ninguém, logo, não têm regras. E se um país
com regras já é o que é, um pedaço de terra abandonada e esburacada, com
carcaças de carros acidentados, minas em lugares desconhecidos e pessoal
contratado para fazer "esperas", tem tudo para que não queiramos
atravessá-lo. Mas não há hipótese, mais vale não pensar muito que ainda não
ganhámos asas.
Finalmente em terras da Mauritânia, senti de novo a chatice
de ser branca nestes países: "Hello, nice girl! What's your name? You're
very white.". Me-do. E aqui, sim, foram umas belas horas de espera. Mais uns
favores e umas prendas e lá seguimos caminho até ao NAD, um orfanato a que a
Missão tem dado algum apoio, numa visita de médico.
Já a altas horas da noite, andámos meio perdidos para
encontrar o albergue onde íamos dormir: um pequeno espaço com três camas e
muito chão onde dormiram dez pessoas (eu e o Daniel preferimos ficar na tenda
do que ao molho), mais uma vez, no meio do nada, perto de Nouadhibou. E é
preciso contornar os polícias que nos vão parando na estrada a dizer que o
albergue mais próximo fica a 140km, que é mais seguro ficarmos ali, onde a
família deles tem também um albergue. Espertezas. Vai-nos valendo o céu, que é
mais estrelado em África do que em qualquer lugar onde tenhamos alguma vez estado.
Na manhã seguinte, partimos para a capital da Mauritânia,
Nouakchott, para percebermos porque é que este é ponto onde começam os alertas
do perigo da malária. Mais sujidade e poças de água por toda a cidade era
difícil e consciencializar estas pessoas mais ainda. É triste sair daqui com a
certeza de que, volte-se as vezes que se voltar, nada terá mudado e a doença continuará a pairar no ar. E ainda ficam a olhar para nós quando nos encharcamos de repelente.
Ainda tivemos que perder imenso tempo no trânsito louco
daquela cidade por causa de um selo que um polícia percebeu que não tínhamos.
Ali, como em todo o continente africano, um carro de matrícula europeia está
tramado e é um dia ganho para as autoridades. Sugam até não poder mais.
A partir daqui começam as estradas esburacadas e não me
lembro de terem alguma vez terminado. É que não são pequenos buracos e muitas
vezes não há sequer espaço para nos desviarmos. Haja rins! Chegados à
fronteira, lá ficámos mais umas belas horas de calor (muito calor!) à espera
que alguém fosse a uma outra cidade tratar dos seguros. Estes momentos
tornam-se um desafio à nossa criatividade para ocupar o tempo, enquanto a
polícia vai procurando droga nos carros e os miúdos vão dando uns toques na
bola e fazendo pose para as fotos.
Até chegar ao Senegal, há que atravessar o Parque Natural de
Dwaling e regalar as vistas com o verde mais alto dos caminhos até agora, os
campos de arroz e os miúdos a cantar, as dezenas de espécies de aves e os
javalis que nos atravessam à frente. Tudo brindado com mais um pôr do sol
encantador e uma estrada onde nos atrevemos a dar uma de todo-o-terreno. A
melhor parte deste dia, com certeza.
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